26.9.14

Os ombros suportam o mundo

Você é inconformado.
Teus olhos já não acreditam no que vêem ao redor. 
Você sabe que é hora de mudar, que o mundo já não cabe nem nele mesmo nem em você.


"Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. 
Tempo de absoluta depuração. 
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram. 
E as mãos tecem apenas o rude trabalho. 
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. 
Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. 
És todo certeza, já não sabes sofrer. 
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? 
Teu ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. 

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo, prefeririam (os delicados) morrer. 
Chegou um tempo em que não adianta morrer. 
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. 
A vida apenas, sem mistificação."


(ANDRADE, Carlos Drummond de)

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